domingo, 2 de janeiro de 2011


I
(Outono / Inverno)
           O dia em que a musa ficou desempregada chegou sem aviso prévio e sem que ela pudesse dar conta. Quando reparou, já estava em queda livre do alto do pedestal, feito de estrelas e flores, que outrora o  mestre lhe erguera com amor. Caiu aos trambolhões desajeitados, ainda trôpega, ainda embebida no doce néctar dos deuses. Cada vez mais perto do solo, via o que outrora fora seu dedicado rumando em sentido contrário a si, tornando-se cada vez mais ténue até desaparecer para o lado de lá do horizonte. Aí, sentiu nos lábios o gosto frio e enlameado do chão e abraçou-o como irmão. Então, embalada pelas chuvas de Outono, adormeceu na doçura de um sono sem sonhos.

II
(Primavera)
Quando os primeiros raios de sol primaveris lhe beijaram o rosto, foi acordando devagar, tentando abrir os olhos ainda cegos com tanta luz. Sorriu e quis erguer-se. Mas a tristeza e a solidão criam raízes fundas, tornam-se vício e tornam-se conforto. Era a custo que se ia levantando, caco a caco, quase átomo a átomo. Por vezes, olhava o céu e julgava ver o que fora seu amado, mas eram apenas as linhas de uma nuvem marota e ilusória. Tais distracções faziam com que não reparasse no sussurrar da tristeza, feito canto de sereia e feito brisa, que a fazia desmoronar de novo de encontro ao chão. Tal como no mito de Sísifo, foi árdua a tarefa de rolar a pedra (que ela própria era), átomo a átomo, montanha acima.
Já de pé, teve de reaprender a andar sozinha, pé ante pé, passinhos de bebé.

III
(Verão)
Foi sem remetente que lhe endereçaram um mapa-mundo. Escolheu um caminho ao acaso e partiu. Mas as expectativas, a excitação, a ânsia do primeiro voo, da novidade da descoberta de uma nova vida dentro da vida, de outro pensar, de outro aprender… foram perdendo o sabor nos dias nublados e chuvosos de um verão que não sabe a verão. E, a cada dia passado, crescia uma urgência em regressar, como se só isso lhe trouxesse de novo um sentido.
IV
(Outono)
O regresso não trouxe o conforto desejado, mas sim uma sensação de estranheza, de quem se esquece aonde pertence. Havia quem lhe falasse da sorte que tinha, do sucesso, do quanto cresceu, da interessante e bela mulher em que se ia tornando… Mas se outros lhe invejavam a sorte, o sucesso, a beleza, porque é que ela se sentia uma coisa amorfa e opaca? Há sempre qualquer coisa que falta, algo que nem sabe o que é. Os dias traziam-lhe apatia e um peso que, que era como o peso de uma velhice de quem vive mais por hábito do que por vontade que querer viver.
V
(Inverno)
É noite no último dia de Dezembro, último dia do ano. É da janela que, a outrora musa, se debruça sobre mais um ano que passou. Há um sabor de inutilidade até nas coisas boas que teve. Lá fora, o som da chuva forte e dos pinheiros agitados pelo vento trazem-lhe uma inesperada calma e uma resposta: “É de mim que sinto falta… É de mim que sinto saudades!”. E é em busca de si que remexe nas fotos antigas, nos cadernos da escola, na caixinha das cartas recebidas (outras nunca enviadas) …
Olha-se ao espelho. Com espanto, dá-se conta de como a sua pele se tornou vítrea e não lhe deixa ver os contornos do seu corpo. O espelho reflecte um quarto vazio e no centro apenas um coração de mármore branco, rígido e frio.
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 Epílogo
O longínquo relógio da torre da igreja anuncia a chegada do novo ano. E é no ecoar de cada badalada que se ouve um estalar de pedra e o renascer ténue do bater de um coração. 

 J. 31dez2010

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