sexta-feira, 23 de novembro de 2007



Ela disse:

- Empresta-me um minuto do teu tempo.
(Esse tempo que vais catalogando em divisões, subdivisões, cronometrado ao milésimo de segundo para cada uma das tuas infinitas coisas importantes, essas coisas a que te emprestas a troco de... vácuo. Já não consigo encontrar a minha gaveta pequenina no armário do teu tempo...) Empresta-me um minuto de ti... Empresta-te-me..

Ele fechou o armário, parou o tempo.
Emprestou-lhe uma vida inteira.
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« Tu disseste "quero saborear o infinito"
Eu disse "a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis"
Tu disseste "sentir a aragem que balança os dependurados"
Eu disse "é o medo o que nos vem acariciar"
Tu disseste "eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpôr o limiar da porta"
Eu disse "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala"
Tu disseste "um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir"
Eu disse "..."
Eu disse "o que é que isso interessa?"
Tu disseste "...nada"
Tu disseste "agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca"
Eu disse "eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede"
Tu disseste "e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?"
Eu disse "não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada"
Tu disseste "e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês"
Eu disse "o que é que isso interessa?
"Tu disseste "...nada" »

Bruno F




"Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."

José Gomes Ferreira

domingo, 18 de novembro de 2007



«Deixem-me ser simbólico! Deixem-me dizer com ênfase que as azedas eram a liberdade. Sim , a Liberdade! A liberdade conquistada. A liberdade amarga e doce, obtida ontem como hoje, como amanhã, como sempre, à custa de sacrifícios sem nome: de zeros, ralhos, incompreensões, quartos escuros, puxões de orelhas, ponteiros nos dedos, reprovações, descomposturas da família, e caretas, muitas caretas, imensas caretas.
Mas, digam-me lá: onde estão as azedas da minha infância que nunca mais as vi? Onde crescem agora? Em que cantos de pátios em ruínas? Em que quintais perdidos ao pé de que nespereiras? Onde? Onde? Onde? Dêem-me azedas! Quero azedas. Tragam-me azedas. Quero morrer a fazer caretas

José Gomes Ferreira

A infância fugiu-me para lugar incerto, fugiu lado a lado com as azedas.
O amor veio e descobri que era como azedas... O mesmo sabor amargo e doce... Caretas... muitas caretas... lado a lado com sorrisos... muitos sorrisos.. e o gosto aos meus tempos de petiz.
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quinta-feira, 8 de novembro de 2007


"Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ..."

Florbela Espanca

quarta-feira, 7 de novembro de 2007


"Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto nem
na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum"

Ruy Belo

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segunda-feira, 5 de novembro de 2007